Grande Curitiba

Do dever ao prazer: um estudo social sobre o futebol

19 de julho de 2021 às 20:00

Muito além das quatro linhas, o futebol já foi o objeto de pesquisa de diversos historiadores e sociólogos que viram no esporte um importante fator social e político.

“A história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar.”

Com as finais da Copa América e da Eurocopa, e com a aproximação dos jogos olímpicos e da Copa do Mundo, o futebol não sai da boca do povo. Tal relação, mesmo que possa passar despercebida pelos menos atentos, é inevitável. O povo ama o futebol, pois o futebol é do povo. Para entendermos toda a importância social em uma das maiores paixões brasileiras, precisamos atravessar o Oceano Atlântico.

O futebol, tanto o praticado no tempo livre por milhares de trabalhadores britânicos, quanto o que acontecia nos campos que recentemente se tornaram profissionais, foi tomado das suas origens na elite britânica para virar a maior das paixões do operário, que com a expansão da ilha, o espalham pelo mundo todo, como dito pelo historiador André Luiz Rodrigues Carreira:

“A propagação planetária do futebol está intrinsecamente relacionada ao imperialismo inglês e à sua vasta área de influência. Surgido no seio das elitizadas instituições de ensino da Inglaterra e rapidamente popularizado pela classe operária britânica, o futebol moderno é fruto do acelerado processo de urbanização ocorrido no país no final do século XIX no contexto da Segunda Revolução Industrial”.

A relação do lazer com o trabalho, tem um pé na luta por jornadas de trabalhos mais justas para os trabalhadores, com o passar do tempo a partir da explosão da Revolução Industrial, como citado por Marx: “A instituição de uma jornada normal de trabalho é, por isso, o resultado de uma guerra civil de longa duração, mais ou menos oculta, entre a classe capitalista e a classe trabalhadora”. Na medida em que as jornadas de trabalho começam a se moldar, o lazer para suas horas vagas se torna um elemento importante na sociedade.

O jogo de futebol vira o ponto central, onde milhares de trabalhadores se juntavam duas vezes por semana para poder torcer, gritar, celebrar e amaldiçoar até o último herdeiro da família daquele atacante que, aos 47 do segundo tempo em uma final da tradicional FA Cup, chutou a bola para fora. O famoso bonezinho chato e com pala, nas palavras do historiador Eric Hobsbawm, torna-se o uniforme oficial do trabalhador, com diversas cores e brasões que podem começar brigas gigantescas desde Londres aos maiores polos industriais britânicos, um simples adereço que entrelaça de maneira fiel e apaixonada, a linha mais tênue entre o lazer e o trabalho, estabelecendo a classe operária como ele indica quando diz que a consolidação das classes sociais e de suas identidades percorre não apenas as atividades diretamente vinculadas ao trabalho, mas também a criação de símbolos e de atividades distintas.

Tal fenômeno se repetiu com igual (ou maior, dependendo se a pergunta é dirigida a um brasileiro ou a um inglês) intensidade no Brasil. Também difundido pela elite, como cita o sociólogo Nicolau Sevcenko “ele seria adotado com enorme entusiasmo pelos grupos populares que, com base em suas tradições rítmicas e lúdicas, relacionadas à destreza do uso dos pés e movimentos do corpo e da cintura, construíram sua própria versão do esporte britânico…”.

O esporte tomou tamanha proporção no país, que em 29 de maio de 1919, por conta de uma partida entre as seleções brasileira e uruguaia pela final do terceiro campeonato Sul-Americano (a atual Copa América), o presidente Delfim Moreira, decretou ponto facultativo nas repartições públicas, e o comércio no Rio de Janeiro, sequer abriu naquele dia. O esporte interferiu na política e vice-versa, Vargas se esforçou para alavancar o futebol no país com a criação do Maracanã que em 1950 protagonizou o famoso “Maracanazo”, onde quase 200 mil pessoas assistiram a derrota da seleção brasileira por 2 a 1 perante o Uruguai na final da Copa do Mundo daquele ano. A revolta foi tão grande que o uniforme branco parou de ser utilizado. Não é exagero afirmar que o fato de a seleção brasileira ter levado para casa a Copa do Mundo de 1970, foi um fator usado como propaganda para a ditadura militar que se estabelecia no país, em matéria da Uol, lê-se: “presidente Médici era apresentado como um “homem do povo” e “apaixonado por futebol”[…] A vitória da seleção brasileira sobre a seleção italiana por 4 a 1, na final, foi bastante explorada pela propaganda do governo em slogans como ‘Brasil; ame-o ou deixe-o”. A esquerda opositora acusava o esporte de ser o “ópio do povo”, jogadores, e times inteiros se revoltaram com a situação, o exemplo mais clássico sendo a Democracia Corinthiana, movimento liderado por jogadores como Sócrates e Casagrande.

Com o passar dos anos, os jogos de futebol pelo mundo começaram cada vez mais a ceder para os gritantes lucros alcançados com a elitização e padronização dos estádios e do preço dos ingressos, como argumenta o escritor Nick Hornby em seu best-seller, febre de bola:

“Parte do prazer que se tem num grande estádio de futebol é uma mistura de parasitismo com passividade, porque, a menos que faça parte do Setor Norte, ou do Kop, ou do Stretford End, o torcedor que está ali depende de outros pra que o clima no estádio seja criado; e clima é um dos ingredientes fundamentais da experiência do futebol. Esses setores gigantescos de arquibancada são tão vitais pros clubes quanto os jogadores, não apenas porque é dali que são puxados os cantos de incentivo, nem simplesmente porque boa parte do dinheiro arrecadado vem desses torcedores (embora tais fatores não deixem de ser importantes), mas porque sem esse pessoal ninguém se daria ao trabalho de comparecer ao estádio”.

Por conseguinte, a possibilidade de assistir frequentemente a jogos nos estádios foi reduzida para os membros da classe operária que ainda se mantêm fiéis aos seus times e ao seu amor pelo esporte, que ao mesmo tempo que virou uma indústria que movimenta mais dinheiro do que se possa contar, sempre haverá uma partida amistosa, a famosa “pelada”, entre todo trabalhador que assim como Galeano, joga pelo puro prazer de jogar.