Câmara na História: briga na capela provocou 1ª eleição de Curitiba
O capitão José Pereira Quevedo, Antônio dos Reis Cavalheiro e Garcia Rodrigues Velho foram os primeiros vereadores de Curitiba, no ano de 1693. Eles foram escolhidos por meio de um intrincado sistema eleitoral imposto pela Coroa Portuguesa às colônias, em três etapas, que misturava votação, indicação e sorteio. As mesmas regras eram usadas para a escolha do procurador e dos juízes, que naquele ano foram, respectivamente, Aleixo Leme Cabral, Antônio da Costa Veloso e Manoel Soares. Esses seis, juntos, foram os primeiros membros da Câmara Municipal de Curitiba.
A população exata na época da criação da Câmara Municipal é desconhecida, mas um documento do bispado do Rio de Janeiro indica que, em 1687, cinco anos antes, a freguesia de Curitiba tinha 37 “fogos” – uma unidade de medida bastante imprecisa, sendo um sinônimo de “domicílios” ou “famílias”. Neste documento, recuperado pelo historiador Angelo Alves Carrara, convencionou-se multiplicar o número de fogos por seis para estimar a população, resultando em 222 pessoas. Entre elas, o bispado do Rio de Janeiro dizia haver 150 “pessoas de comunhão”, ou seja, católicos.
Não se sabe quantas dessas “pessoas de comunhão” eram do sexo masculino, mas somente elas, os “homens bons”, participavam do processo eleitoral. Além de católico, para ser considerado “homem bom” era preciso ser branco, maior de 25 anos de idade, casado ou emancipado, ser proprietário de terra e não praticar trabalhos manuais. Essas regras propositalmente excludentes garantiram que as famílias portuguesas e seus descendentes protagonizassem a política na época do Brasil Colônia, marcado pela escravidão de indígenas e africanos.
Curitiba, ou a Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, era bem diferente do que conhecemos hoje. O povoado integrava a Capitania de São Vicente (1533-1710) e, depois, passou a integrar a de São Paulo (1710-1853), tendo começado como um grupamento de garimpeiros nômades – os faiscadores, interessados no ouro de aluvião, existente nos vales dos rios, que mantinham roças de mandioca, milho e feijão para sua subsistência.
O ouro acabou depressa e a região de Curitiba, então chamada de Sertão de Paranaguá, especializou-se na criação de animais de carga e corte, vendidos para onde a mineração ainda prosperava. O registro mais antigo de sesmaria é de 1639, quando uma área no ribeiro do Juriqui-Mirim foi atribuída a Matheu Luiz Grou – hoje, ela englobaria partes de Curitiba, Almirante Tamandaré e Campo Largo. Há dúvidas se ele fixou residência aqui, mas seus descendentes foram moradores registrados da Vila.
“Tão desamparado de governo”
No dia 24 de março de 1693, os moradores do povoamento enviam uma carta ao capitão-povoador Mateus Leme exigindo a convocação de eleição para a Câmara Municipal, na qual se queixam da insegurança vivida na área, onde “andam todos com as armas na mão”, em razão dos crescentes “insultos e roubos”. Dizem que ele, Leme, já “decrépito”, não é mais capaz de impor a ordem social sozinho, de tal modo que o povo está “tão desamparado de governo e [da] disciplina da Justiça”. “Junte-se o povo. Deferirei o que ao que pedem”, acata Leme, na mesma data, chamando a eleição para cinco dias depois. Essa correspondência está disponível online, reunida no Livro Tombo, na seção Nossa Memória do portal da CMC.
A escolha dos primeiros membros da Câmara Municipal aconteceu na Capela de Nossa Senhora da Luz, erguida em 1654, próxima da área que conhecemos hoje como praça Tiradentes. A CMC já contou antes, quando relatou a história da padroeira de Curitiba, que, para o historiador Ruy Wachowicz, a gota d’água que fez transbordar a impaciência da população com a falta de uma Câmara foi justamente uma briga entre dois moradores da vila, dentro da Capela de Nossa Senhora da Luz, durante a Páscoa daquele ano, que foi comemorada no dia 22 de março.
Naquele momento, Mateus Leme estava há mais de 24 anos nessa função de líder local, por ordem de Gabriel de Lara, capitão-mor e sesmeiro de Paranaguá, que, em 4 de novembro de 1668, autorizou o erguimento do Pelourinho na povoação, mas parou por aí. Em geral, logo após o Pelourinho eram eleitos os membros da Câmara, confirmando a elevação do povoado à categoria de Vila. Gabriel de Lara não concluiu o ritual, criando uma exceção que favoreceu sua influência política na região até sua morte, na década de 1680.
Na carta do dia 24 de março de 1693, os moradores lembravam que, segundo as regras portuguesas, povoados com 30 homens bons já podiam ter câmaras municipais. Na ata de erguimento do Pelourinho, 25 anos antes, a historiadora Cecília Maria Westphalen identificou a assinatura de 17 moradores. A relação consta no artigo “Origens e Fundação de Curitiba”, publicado na edição 105 do Boletim Informativo da Casa Romário Martins. Parece razoável que o número esteja subestimado; logo,não foi o tamanho da vila que fez Lara postergar a criação da Câmara.
A primeira eleição em Curitiba
Naquele mês de março de 1693 obviamente não havia um prédio da Câmara Municipal, então os “homens bons” se reuniram na capela, que, apesar de ser simples, de pau a pique, era o maior prédio do povoamento. A primeira etapa do processo era uma votação entre todos, para escolher quais seriam os seis selecionados para exercerem o papel de “Eleitores”, que indicavam vereadores, juízes e procurador. Não havia a figura do candidato – todos “homens bons” eram elegíveis para as posições.
Dentro da igrejinha reuniram-se 64 “homens bons”, no dia 29 de março, conforme registrado na ata daquele encontro. Pareando documentos históricos, Cecília Maria Westphalen identificou mais 29 homens presentes na eleição da primeira Câmara de Curitiba, elevando o número de 64 para 93 participantes. No seu artigo, à disposição para consulta na Biblioteca Pública do Paraná, a historiadora apresenta dados biográficos e as relações de parentesco entre eles.
É de se pressupor que apenas os 64 registrados participaram da primeira etapa da escolha. Aos ouvidos do escrivão João Rodrigues Seixas, cada um deles sussurrou quem deveriam ser os Eleitores, de tal forma que, contados os votos, tinham sido escolhidos Agostinho de Figueiredo, Luiz de Góis, Garcia Rodrigues Velho, João Leme da Silva, Gaspar Carrasco dos Reis e Paulo da Costa Leme. Após prestarem juramento ao padre Antônio Alvarenga, exercendo o poder delegado a eles pela comunidade, foram esses seis que decidiram quem exerceria o poder político no ano seguinte.
O documento histórico é omisso sobre o processo de indicação levado a cabo pelos Eleitores, deixando uma dúvida se a etapa final, do sorteio dos pelouros, foi cumprida. Apontamentos registrados em 1721, por ocasião da vinda do Ouvidor Pardinho até a cidade, sugerem que os moradores de Curitiba não seguiam ao pé da letra as regras das Ordenações Filipinas, que, no Primeiro Livro, Títulos 61 a 67, explicava o funcionamento da eleição por “pelouros”. A CMC já detalhou esse intrincado mecanismo eleitoral no Nossa Memória, quando discutiu a política colonial.
Pelas regras, os seis Eleitores seriam divididos em duplas e cada uma delas, sem se comunicarem umas com as outras, comporia uma lista própria, indicando entre os “homens bons” da Vila quem deveria ocupar os cargos. As listas seriam entregues ao escrivão, que as colocaria dentro de três bolas de cera independentes, chamadas de “pelouros”. Então uma criança de até sete anos escolheria um dos pelouros e aquela lista indicaria as autoridades municipais do ano seguinte. Com essas regras, a Coroa Portuguesa buscava desestimular a competição entre as famílias mais importantes de cada povoado.
De 1693 a 1721, a Vila de Curitiba aparentemente ignorou partes da regra dos pelouros e realizou eleições anuais para o preenchimento dos cargos da Câmara Municipal. Essa situação foi objeto de uma reprimenda do Ouvidor Pardinho aos moradores, que recomendou a eles, por escrito, que passassem a realizar eleições trienais dali em diante, pois havia “bastantes pessoas” para o funcionamento do modelo português, com o sorteio dos pelouros. Tudo leva a crer que não houve a etapa do sorteio na primeira eleição municipal.
Câmara na História
A Câmara Municipal de Curitiba (CMC) conta as legislaturas a partir do ano de 1947, após o fim do Estado Novo, mas a verdade é que a trajetória da instituição começou muito antes, lá no Brasil Colonial, e segue pelo Império, pela República Velha e pela Era Vargas até chegar nos períodos democráticos, aterrisando na Nova República, fundada com o fim da ditadura militar. Na série de reportagens “Câmara na História”, a Diretoria de Comunicação Social avança no projeto Nossa Memória, resgatando as principais características do Legislativo e da própria cidade em cada um desses períodos.
A ideia é que a população possa ter um panorama de como a CMC e Curitiba nasceram e se transformaram juntas, caminhando lado a lado, dentro da história do Brasil. Entre o fim de outubro e o dia 18 de novembro, serão publicadas sete reportagens especiais, às quintas e sextas-feiras. E também vai ter história rolando nas redes sociais da Câmara, de uma forma mais descontraída e acessível.
Iniciado em 2009, pela Diretoria de Comunicação Social, o Nossa Memória é um projeto de resgate e valorização da história da Câmara Municipal e de Curitiba, já que ambas se entrelaçam. Além das reportagens especiais, a página traz, por exemplo, “Os Manuscritos”, que reúne documentos desde a fundação oficial da cidade, em 1693, e o “Livro das Legislaturas”, com os vereadores da capital paranaense desde 1947.
Fonte: Câmara Municipal de Curitiba